sábado, 17 de abril de 2010

Não sei quantas almas tenho (Fernando Pessoa)

"Não sei quantas almas tenho
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu."
Enfrento, sem nenhuma outra ajuda, além da própria cabeça e do coração, o vazio - tão jovem - deixado pelo poeta que me levou nos braços, por tantas noites, ao encontro do verso que esperava para adormecer comigo. Ensinou-me o poeta, que eu poderia recriar o universo segundo uma nova dimensão, na qual seria necessário pintar-me de ousadia para, só assim, dar vida aos meus sonhos e convicções e fazer da sensibilidade o ponto máximo do meu projeto de vida.
O homem das cores sábias deixou de ser palpável. É energia que, derramada sobre mim, transborda.
Eu bebi as cores do meu pai e trouxe comigo. Elas, que compõem o cenário da minha alma.
O cenário das mais fortes emoções, que gritam detrás das cortinas vermelhas que se abrem a cada espetáculo de sentimentos. Eles esperam ser aplaudidos de pé.
Quero ver uma plateia de bichos homens, entre eles, o mais humano, que irá explorar a densa selva de cores. O que baterá a última palma, ao fim do espetáculo, e permanecerá no mesmo local, inconformado com o fechar das cortinas, esperando a hora da revelação - quando os sentimentos sairão daquele palco nus e crus, cansados, sem maquiagem, completamente desbotados, e serão convidados a passar a noite sob os cuidados da lua. Quero que bichos se cheguem com mansidão ao bicho manso, doce e meramente humano que eu tanto procuro ser. Quero, como uma selvagem em busca de abrigo no meio da tempestade, o único dia em que me encontrarão. Tão livre, e sozinha na natureza. Na mais pura e antiga condição humana, nua da cabeça aos pés.
O dia em que ousarão vestir-me, alma impregnada de choro, regida de fogo e arte.